quinta-feira, 7 de fevereiro de 2008

Um rei na Bahia, 1808

A cidade de São Salvador da Bahia de Todos os Santos, por sua posição estratégia no Atlântico Sul, durante três séculos fora uma parada quase obrigatória para as naus lusitanas que faziam a Carreira das Índias. Firmaram-na desde 1549 como sede do governo colonial do Brasil por mais de dois séculos, até ceder a posição para o Rio de Janeiro. Com a chegada repentina de D.João e da corte portuguesa, em 22 de janeiro de 1808, ela almejou, uma curta esperança, voltar a ser a capital tropical do Império Português


Pondo os pés na terra


"A ti trocou-te a máquina mercante/ Que em tua larga barra tem entrado/ a mim foi-me trocado, e tem trocado/tanto negócio e tanto negociante"
Gregório de Matos – a Cidade da Bahia (cerca de 1680)


Para uma cidade que num nada se deixa soltar numa batucada, ao retumbar solto dos
tambores africanos, é de se imaginar o delírio da população de Salvador na Bahia quando há duzentos anos atrás avistou a nau capitania Príncipe Regente que adentrava no Recôncavo e ancorava na barra. Era o dia 22 de janeiro de 1808.


Viagem dura aquela, cheia de enjôos, nuvens de piolhos e desconfortos mil provocados pelos maus-humores de Netuno, mas que trouxe intacta à terra brasileira a corte portuguesa. Sobrevivera há 54 dias no mar desde que se retirara em tempo de Lisboa escapando do general Junot. Calcula-se em 15 mil os que estavam a bordo dos 30 e tantos barcos (eram 8 naus, 3 fragatas, 2 brigues, 1 escuna de guerra, 1 charrua de mantimentos e mais 20 navios mercantes). Fora um inferno. A esquadra do almirante inglês Sidney Smith os protegera até a altura do Açores, depois se entregaram à sorte das correntes atlânticas e à boa vontade dos ventos alísios.


D.João, mareado, uma ironia para um soberano de uma nação de argonautas que por séculos dominara os oceanos e, como registrara Camões, ainda enfrentara de peito aberto o gigante Adamastor e todo o "inimigo que pelas águas úmidas caminha", ficou para sempre com pavor do mar.


Festa política


Saltaram, o Regente e a corte, no ancoradouro no dia 23 em meio às festas promovidas pela gente local extasiada, tendo ao fundo a ressonância das fanfarras e dos atabaques misturados aos sinos da Conceição da Praia e do Mosteiro de São Bento que, lá da Cidade Alta, liderava os repiques das centenas de Igreja da cidade. Salvas de canhões ecoavam ao fundo.


Em nome do poder colonial receberam-nos o conde da Ponte, governador da Bahia,
seguido do aparato local, rumando todos para um Te Deum portentoso, rezado pelo arcebispo D.Frei José de Santa Escolástica na catedral. Aquela atiçada folia que descia pela Ladeira da Preguiça até a Cidade Baixa não era somente um deslumbre do colonizado frente à pompa da metrópole. Havia intento político no meio do folguedo. O fausto provinciano tinha suas ambições.


Os baianos, desde que receberam a notícias da aproximação do príncipe e da sua família, cogitaram reverter a situação de Salvador. Trocada pelo Rio de Janeiro pela força da descoberta dos ouros e diamantes das Minas Gerais, cidade promovida a capital do Vice-Reino em 1763, logo em seguida à morte do marquês de Lavradio, esperavam que o soberano, emocionado com o carinho geral dos festejos e do beija-mão que se estenderam por uma semana, decidisse ficar por ali mesmo, naquela que era considerada a cidade mais portuguesa dos trópicos. São Salvador tinha vocação imperial.


Era uma cópia de Lisboa, como percebera a pena luminosa do professor Luís Vilhena (A Bahia no século XVIII, Carta II). A denguice, o requebro e o feitiço, todavia, não superaram o poder do brilho que vinha do garimpo mais ao sul.


Fora trocada pela "máquina mercante" que se deslocara para o Rio de Janeiro, a qual também fizera Salvador ceder a triste posição de ser o maior porto do Atlântico Sul dedicado ao tráfico de escravos. Até então, segundo a estimativa de Luis Vianna Fº, dos 3.600 mil de africanos importados pelo Brasil até 1830, 1/4 deles, ou seja, 1.087 mil foram negociados em Salvador. Na década mesma em que D.João desembarcou, entre 1801 e 1810, quase 90 mil africanos, majoritariamente vindos do golfo de Benin, foram vendidos na capitania da Bahia. Por igual, além de escoar para Lisboa açúcar, fumo e madeiras, era porto de reparos, fazendo com que as naus abatidas pelas ventanias e temporais do Atlântico, lá se recompusessem nos estaleiros que Tomé de Souza fizera erguer desde 1550.


Mesmo sabedores da intenção do Regente em retomar a viagem para ao Rio de Janeiro, preparam-lhe uma súplica redigida por Balthasar da Silva Lisboa, irmão do futuro visconde de Cairu, o primeiro livre-cambista do Brasil, que dizia: [Salvador] "foi a primeira terra do Brasil povoada, e a sua capital, e foi também a primeira que saiu a receber seu Soberano (...) o seu incomparável porto, o mais belo do mundo,está como no centro das colônias de V.ª que dominado a África lhe abre uma comunicação tanto mais fácil com a Ásia."


Enquanto isto o povo nas ruas cantava:
"Meu príncipe regente/Não saias daqui/Cá ficamos chorando/Por Deus e por ti...!".


Abertura dos Portos


Pelo menos D.João deixou-lhes dois presentes. Além da semente de uma Escola de Cirurgiões, foi lá no Senado da Câmara da cidade que ele firmou em 28 de janeiro a Carta Régia abrindo os portos brasileiros "às nações amigas", pagando assim uma dívida para com os britânicos ao tempo em que abria a costa brasileira, oficialmente fechada desde 1605, ao comércio internacional. José da Silva Lisboa, o visconde de Cairu, o maior estudioso da ciência econômica, um dos raros intelectuais da colônia, um admirador de Adam Smith, ficou em êxtase. Findaram-se assim com um só autógrafo real três séculos de Pacto Colonial.


Curioso. D.João que em muitas crônicas registram-no um paspalhão, o João Bobão que esposara uma megera, um rei fujão amedrontado com tudo, terminou por fazer com que - desde a volta dele para Lisboa em 1821 - D.Pedro II, um neto seu, mantivesse o poder dos Bragança no Brasil ainda por mais quase 70 anos. A família da mulher dele, D. Carlota Joaquina, dos Bourbon espanhóis, nesse tempo, viu-se despojada de quase toda a América. Nada mau para quem era tido como um tonto.

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